“Ao aproximar-se
o mês de Maio, consagrado a Maria Santíssima, pela piedade dos fiéis, o nosso
espírito exulta ao pensar no espetáculo comovente de fé e de amor que, dentro
em breve, será oferecido em todas as partes da terra em honra da Rainha do céu”
(da introdução da Carta Encíclica Mense
Maio, do Papa Paulo VI, de 29 de Abril de 1969). Iniciamos este mês
marcadamente mariano com a celebração litúrgica, embora de cunho facultativo,
de São José Operário (1º de Maio). Creio não ser um despropósito falar sobre
São José num mês consagrado à Virgem Mãe do Senhor, até porque quem honra São
José necessariamente honra a Santíssima Virgem, sua Esposa e seu Filho Jesus
Cristo.
São José tem um
lugar singular na história da salvação, embora o que os Evangelhos nos contam
sobre São José limitem-se a poucas frases. As fontes biográficas de São José
são escassas. Os Evangelhos de Mateus e de Lucas apenas mencionam São José. Os
escritos apócrifos não merecem fé, ou pelo menos devem passar pelo “crivo da
fé” quando lidos por nós. São José era descendente da casa de David (cf. Mt
1,16.17). O fato notório na vida do homem justo (Mt 1,19) foi o seu
casamento com Maria, que, nos escritos apócrifos é narrado com certa áurea
lendária. A tradição popular nos conta que eram muitos os aspirantes à mão de
Maria. Então todos os jovens pretendentes teriam deixado seus bastões para obter
um sinal milagroso — este seria o presságio que constituiria a eleição divina.
O sinal apareceu. Todos reconheceram a preferência que, é lógico, recaiu sobre
São José.
Essa cena que
está presente no livro apócrifo
Proto-Evangelho de Tiago (ou Evangelho
da Natividade de Maria), nos capítulos VIII e IX tem, contudo, bases
bíblicas. Vejamos:
“O SENHOR
disse a Moisés: ‘Fala aos israelitas e toma de cada casa patriarcal uma vara
— doze varas, portanto, uma para cada chefe de casa patriarcal. Escreve o
nome de cada uma sobre a respectiva vara. Na vara de Levi escreverás o nome
de Aarão, pois cada vara representa o chefe da casa patriarcal. Colocarás as
varas na tenda do encontro, diante da arca da Aliança, lá onde eu me encontro
convosco. A VARA DAQUELE QUE EU ESCOLHER FLORESCERÁ. Assim afastarei as
murmurações que os israelitas fazem contra vós’.
Moisés pediu aos israelitas que os chefes
lhe entregassem doze varas, uma vara para cada chefe, representando a
respectiva casa patriarcal. Entre as varas estava a vara de Aarão. Moisés
depositou as varas diante do SENHOR
na tenda da Aliança. No dia seguinte, ao entrar na tenda da Aliança, Moisés
viu que a vara de Aarão, da casa de Levi, TINHA PRODUZIDO BROTOS E DADO
FLORES E AMÊNDOAS maduras. Moisés retirou todas as varas da presença do SENHOR e as trouxe aos israelitas.
Eles as viram e cada um pegou a sua.
O SENHOR
disse a Moisés: ‘Recoloca a vara de Aarão diante do documento da Aliança,
para guardá-la como sinal para esses rebeldes. Assim terminarão as
murmurações contra mim, e eles não morrerão’. Moisés fez assim como o SENHOR lhe havia mandado” (Nm
17,16-26).
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Na linguagem
bíblica do Antigo Testamento, a vara é o ramo florescente da AMENDOEIRA que
Deus fez brotar para escolher o sumo sacerdote Aarão como custódio do
tabernáculo (cf. Nm 17,16). Mas o que isso tem a ver com São José? Tão
“silencioso”, ao menos aparentemente, São José diz-nos bastante através dessa
linguagem no Proto-Evangelho de Tiago, que é fundamentada nessa passagem do
Livro dos Números (Nm 17, 16-26). Vamos conferir o texto do Proto-Evangelho de
Tiago:
“(...)
Mas, ao completar doze anos, os sacerdotes reuniram-se para deliberar,
dizendo: ‘Eis que Maria cumpriu doze anos no templo do Senhor. Que faremos
(...)?’ E disseram ao sumo sacerdote: ‘Tu que tens o altar a teu cargo, entra
e ora por ela, e o que o Senhor te disser, isso será o que haveremos de
fazer’.
E o
sumo sacerdote, cingindo-se com o manto das doze sinetas[1], entrou no ‘santo
dos santos’ e orou por ela. Mas eis que um anjo do Senhor apareceu,
dizendo-lhe: ‘Zacarias, Zacarias, sai e reúne a todos os viúvos do povoado.
Que cada um venha com um bastão, e o daquele em que o Senhor fizer um sinal
singular, deste será ela esposa’. Saíram os arautos por toda a região da
Judéia e, ao soar a trombeta do Senhor, todos acudiram.
José,
deixando de lado sua acha, uniu-se a eles e, uma vez que se juntaram todos,
tomaram cada qual seu bastão e puseram-se à procura do sumo sacerdote. Este
tomou todos os bastões, entrou no templo e se pôs a orar. Terminadas as suas
preces tomou de novo os bastões e os entregou, mas em nenhum deles apareceu
sinal algum. Porém, ao pegar José o último, eis que uma pomba saiu dele e se
pôs a voar sobre sua cabeça. Então o sacerdote disse: ‘A ti coube a sorte de
receber sob tua custódia a Virgem do Senhor’” (Proto-Evangelho de Tiago
VIII,2—IX,1).
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A iconografia
mostra-nos São José com um bastão florescente, muito embora no Proto-Evangelho
de Tiago surja uma pomba da vara de São José (Proto-Evangelho de Tiago IX,1).
Mas gostaria de chamar a atenção para o tipo da planta que constituía os
arbustos que eram utilizados para “tirar a sorte”, modo como que a literatura
bíblica patriarcal indicava a intervenção de Deus numa dada circunstância, por
exemplo, como a da escolha do sumo sacerdote em que Aarão foi eleito (Nm 17,
16-21). Estamos acostumados a ver as imagens de São José com o Menino Jesus ao
seu colo, e, ao seu lado, uma flor de lírio ou de açucena. Similarmente aos
Patriarcas, São José era representado na iconografia com um bastão de amendoeira, e, o significado desse
símbolo bíblico é bastante rico. Se no Antigo Testamento nós vimos, por
exemplo, Aarão ser agraciado com o milagre em seu favor — o seu bastão de
amendoeira “floresceu” — mostrando que ele havia sido eleito por Deus para
guardar e proteger o tabernáculo, agora na economia do Novo Testamento foi São
José o escolhido diretamente por Deus como custódio de um tabernáculo muito
mais precioso — Maria Santíssima, Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo — cujo
significado simbólico é esse: a amendoeira,
que em hebraico significa “vigilante” — dado que suas flores são as primeiras a
aparecer na primavera, avisando que a estação chegou —, de modo análogo era
agora São José a nos avisar que a Encarnação do Verbo chegou, que os tempos
messiânicos começaram a se cumprir! De fato, na língua hebraica, o termo “amendoeira” é traduzido por
“despertadora”, “vigilante”, uma alusão à sua flor, que é a primeira a
florescer na primavera. As flores de coloração róseo-branca sempre surgem antes de suas folhas. Aliás, a amendoeira desempenhou um papel importante na história de Israel. Jacó incluiu nozes de amendoeira entre seus presentes a José no Egito (Gn 43,11). A ornamentação dos candelabros era feita depois que a amendoeira florescia (Ex 25,33). E, como vimos acima, a vara de Aarão constituía-se num galho de amendoeira (Nm 17,8). Porém, essa simbologia quase se perdeu no final do século XIX — talvez por influência do puritanismo da “era vitoriana” — quando os pintores substituíram a amendoeira (símbolo da vigilância) pelo lírio ou pela açucena (símbolos da pureza), esquecendo-se, todavia, do tema da eleição feita por Deus (Nm 17,16).
florescer na primavera. As flores de coloração róseo-branca sempre surgem antes de suas folhas. Aliás, a amendoeira desempenhou um papel importante na história de Israel. Jacó incluiu nozes de amendoeira entre seus presentes a José no Egito (Gn 43,11). A ornamentação dos candelabros era feita depois que a amendoeira florescia (Ex 25,33). E, como vimos acima, a vara de Aarão constituía-se num galho de amendoeira (Nm 17,8). Porém, essa simbologia quase se perdeu no final do século XIX — talvez por influência do puritanismo da “era vitoriana” — quando os pintores substituíram a amendoeira (símbolo da vigilância) pelo lírio ou pela açucena (símbolos da pureza), esquecendo-se, todavia, do tema da eleição feita por Deus (Nm 17,16).
Outro texto
bíblico reforça essa tese da eleição realizada por Deus, aproveitando o
trocadilho entre as palavras que evocam a idéia de amendoeira/vigiar: é o texto de Jr 1,11s. O original joga com a
semelhança sonora em hebraico de “amendoeira”
(em hebraico שקד, lê-se [/SHeKeD/]) e o verbo “vigiar”/”madrugar” (em hebraico שקדי,
lê-se [/SHôKeD/]. No texto de Jr 1,11s a palavra “amendoeira” (a “árvore vigilante”) evoca o Senhor vigilante,
apontando que toda a palavra de Deus se realizará. A amendoeira na Bíblia denota confiança em Deus, — o Deus sempre
alerta — que cumpre com a sua palavra!
A simbologia da amendoeira
é muito rica. Nas regiões do mar mediterrâneo começava a florescência da
amendoeira já em janeiro, de sorte que ela se tornou símbolo da qualidade de
quem se põe em estado de alerta, de vigilância. O fruto na casca dura de
madeira era designado na antiguidade com o mesmo nome, quer se tratasse da
amendoeira, quer da noz; o latim nux
pode significar tanto a noz como a amendoeira. De acordo com tradições do
antigo oriente, o mundo surgiu do fruto original em forma de casca; círculos
exotéricos entre os adoradores de Cibele
viam o antepassado universal na figura da amendoeira.
No hebraico, a
amendoeira se chama /SHeKeD/ — a “vigilante” —, razão por que se pode encontrar
em diversas traduções da Bíblia a expressão “árvore da vigilância” em vez de
“amendoeira”. Refere-se ao duplo sentido de /SHeKeD - SHôKeD/ que foi referido
anteriormente, quando Jeremias vê um “ramo de amendoeira” e o Senhor lhe diz: “viste bem, porque eu estou vigiando sobre a minha palavra para
realizá-la” (Jr 1,11s). Aqui, o próprio Deus é a “Amendoeira” (= “Aquele
que vigia” para que a sua palavra venha a se cumprir).
Nos Padres da
Igreja, o ramo da amendoeira e o seu fruto eram considerados símbolos do
sacerdócio — isso devido à interpretação dada em Nm 17,16. O modo de se
comportar do sacerdote deve, no exterior, ser sóbrio e contido, ao passo que o
seu interior envolva a fé como alimento invisível. “O ramo da amendoeira é
Cristo”, escreve São Paulino de Nola. O fruto doce da casca dura tornou-se,
enfim, também símbolo da Encarnação do Verbo de Deus e recebeu, em cooperação
com outros conteúdos de outra origem, a sua mais célebre representação
artística na auréola em forma de amêndoa, que — por causa de sua interpretação
simbólica referente à ressurreição — se pode encontrar com frequência na
representação de Cristo como Juiz universal. Se Maria aparece na auréola em forma
de amêndoa é para indicar que Cristo foi gerado em Maria, assim como o caroço
da amêndoa se forma na casca que permanece inviolável.
Voltando ao
Proto-Evangelho de Tiago, o texto que diz respeito ao casamento da Virgem Maria
e São José é cercado de criatividade. Aliás, a imaginação dos autores dos
apócrifos do Novo Testamento, sobretudo o Proto-Evangelho de Tiago, esforçou-se
por rodear de circunstâncias lendárias os esponsais de Maria, dando origem a
umas fábulas que encontraram tal crédito através de séculos e inspirando os
artistas cristãos. Segundo a narrativa exposta, São José foi o que se
beneficiou do milagre. Entre os que deste modo se teriam afastado
encontrar-se-ia um certo Agabo, jovem nobre e rico, que, desgostoso e despeitado,
teria fugido para o deserto; no famoso quadro de Rafael Sanzio, Il Sposalizio, podemos vê-lo retratado
quebrando o seu cajado sobre o joelho!
Outro dado que causa
curiosidade é o fato de as Escrituras retratarem a eleição de Deus através do
ramo de uma árvore (a amendoeira), como em Nm 17,16 — e que podemos aplicar a
São José, no quadro de Rafael — pois dar flores ou fruto é símbolo óbvio de
vitalidade e fecundidade (cf. Is 11,1; 6,13; Os 14,6-8). Apesar do “silêncio” aparente
de São José nos Evangelhos, sua vida e testemunho obediente a Deus foram muito
fecundos para a vida de Cristo e de sua Mãe Santíssima. Podemos aplicar à vida
de São José o que Cristo mesmo lembra em Jo 15,5: “Eu sou a videira e vós, os ramos. Aquele que permanece em mim,
como eu nele, esse dá muito fruto (...)”. Sem sombra alguma de dúvida, a vida de São José foi a
realização à letra desse programa de perfeição traçado sob o signo da
obediência e da vigilância. Ao ser exortado em sonho pelo Anjo a acolher Maria
e Jesus, São José assim o faz “conforme o anjo do
Senhor tinha mandado” (Mt 1,24); alertado ainda sobre o perigo que oferecia Herodes à
vida de Jesus, São José foge com Maria e o Menino Jesus para o Egito (Mt 2,13-15);
e novamente avisado em sonho sobre a morte de Herodes, São José toma o Menino e
sua Mãe para retornar para a terra de Israel, porém para Nazaré, para que se
cumprissem as Escrituras (Mt 2,19-23; cf. também Jz 13,5; 1Sm 1,11). Em São
José vemos como se harmonizam a fé e a obediência a Deus, alimentadas com toda
a certeza por uma vigilância exemplar aos desígnios de Deus através de uma vida
interior profunda, de busca de intimidade com o Senhor para lhe “escutar a voz”
e executar a sua vontade.
Nos Evangelhos o silêncio
— a exemplo de Nossa
Senhora — perpassa toda
a vida de São
José. Trata-se, contudo , de um silêncio que desvenda de maneira
especial o perfil
interior desta figura .
Os Evangelhos falam exclusivamente
daquilo que São
José fez; no entanto ,
permitem-nos auscultar nas suas
ações ,
envolvidas pelo silêncio ,
um clima
de profunda contemplação . São José estava cotidianamente em
contato com
o mistério escondido
desde todos
os séculos (cf. Ef 3,9), que estabeleceu sua morada
(cf. Jo 1,14; Sl 19 [18],5c) sob o teto da sua casa . Isto
explica, por exemplo ,
a razão por
que Santa
Teresa de Jesus se tornou promotora da renovação do culto
de São José na cristandade
ocidental : “As pessoas de oração, em
especial, deveriam ser-lhe mais afeiçoadas; não sei como se pode pensar na
Rainha dos Anjos, no tempo em que tanta angústia passou com o Menino Jesus, sem
se dar graças a São José pela ajuda que lhes prestou. Quem não encontrar mestre
que ensine a rezar tome por mestre esse glorioso Santo, e não errará o caminho.
Queira o Senhor que eu não tenha cometido erro por me atrever a falar dele;
pois, embora apregoando que lhe sou devota, em servi-lo e imitá-lo sempre
falhei (...)” (Santa Teresa de Jesus, Livro
da Vida 6,8).
Que São José nos
ensine o caminho da obediência a Deus e a vigilância na oração para que a nossa
vida também seja agradável a Deus e possa frutificar em boas obras. “Ide a José e fazei o que ele vos disser” (Gn 41,55).
L. D. V. M.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
A BÍBLIA DE
JERUSALÉM. São Paulo: Paulinas, 1989.
ALONSO SCHÖKEL, Luis.
Dicionário bíblico hebraico-português. São Paulo: Paulus, 1997.
APÓCRIFOS, os
proscritos da Bíblia. Compilados por Maria Helena de Oliveira Tricca. São Paulo:
Mercuryo, 1989.
BIBLIA
HEBRAICA Stuttgartensia. 5 ed. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 1997.
BÍBLIA
SAGRADA. Tradução da CNBB. São Paulo: Ave Maria, 2001.
DOCUMENTOS DE
Paulo VI. São Paulo: Paulus, 1997
GASNIER, Michel. José, o
silencioso. São Paulo: Quadrante, 1995.
MADRE MARIA JOSÉ DE JESUS.
Nosso Pai São José. 8 ed. Rio de Janeiro: Convento Santa Teresa, 2001.
NESTLÉ, E.; ALAND, K.
Novum Testamentum Graece. 27 ed. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft,
2001.
TERESA DE JESUS. Obras
Completas. 2 ed. São Paulo: Ed. Carmelitanas/Loyola, 2002.
[1] O
manto do efod (peça do vestuário dos
ministros do culto) de que fala o Livro do Êxodo (Ex 28,6-14).
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