São José e o ramo da amendoeira -Frei André Severo ,OCD

SÃO JOSÉ E O RAMO DA AMENDOEIRA...

       
    “Ao aproximar-se o mês de Maio, consagrado a Maria Santíssima, pela piedade dos fiéis, o nosso espírito exulta ao pensar no espetáculo comovente de fé e de amor que, dentro em breve, será oferecido em todas as partes da terra em honra da Rainha do céu” (da introdução da Carta Encíclica Mense Maio, do Papa Paulo VI, de 29 de Abril de 1969). Iniciamos este mês marcadamente mariano com a celebração litúrgica, embora de cunho facultativo, de São José Operário (1º de Maio). Creio não ser um despropósito falar sobre São José num mês consagrado à Virgem Mãe do Senhor, até porque quem honra São José necessariamente honra a Santíssima Virgem, sua Esposa e seu Filho Jesus Cristo.
           São José tem um lugar singular na história da salvação, embora o que os Evangelhos nos contam sobre São José limitem-se a poucas frases. As fontes biográficas de São José são escassas. Os Evangelhos de Mateus e de Lucas apenas mencionam São José. Os escritos apócrifos não merecem fé, ou pelo menos devem passar pelo “crivo da fé” quando lidos por nós. São José era descendente da casa de David (cf. Mt 1,16.17). O fato notório na vida do homem justo (Mt 1,19) foi o seu casamento com Maria, que, nos escritos apócrifos é narrado com certa áurea lendária. A tradição popular nos conta que eram muitos os aspirantes à mão de Maria. Então todos os jovens pretendentes teriam deixado seus bastões para obter um sinal milagroso — este seria o presságio que constituiria a eleição divina. O sinal apareceu. Todos reconheceram a preferência que, é lógico, recaiu sobre São José.
           Essa cena que está presente no livro apócrifo Proto-Evangelho de Tiago (ou Evangelho da Natividade de Maria), nos capítulos VIII e IX tem, contudo, bases bíblicas. Vejamos:

“O SENHOR disse a Moisés: ‘Fala aos israelitas e toma de cada casa patriarcal uma vara — doze varas, portanto, uma para cada chefe de casa patriarcal. Escreve o nome de cada uma sobre a respectiva vara. Na vara de Levi escreverás o nome de Aarão, pois cada vara representa o chefe da casa patriarcal. Colocarás as varas na tenda do encontro, diante da arca da Aliança, lá onde eu me encontro convosco. A VARA DAQUELE QUE EU ESCOLHER FLORESCERÁ. Assim afastarei as murmurações que os israelitas fazem contra vós’.
Moisés pediu aos israelitas que os chefes lhe entregassem doze varas, uma vara para cada chefe, representando a respectiva casa patriarcal. Entre as varas estava a vara de Aarão. Moisés depositou as varas diante do SENHOR na tenda da Aliança. No dia seguinte, ao entrar na tenda da Aliança, Moisés viu que a vara de Aarão, da casa de Levi, TINHA PRODUZIDO BROTOS E DADO FLORES E AMÊNDOAS maduras. Moisés retirou todas as varas da presença do SENHOR e as trouxe aos israelitas. Eles as viram e cada um pegou a sua.
O SENHOR disse a Moisés: ‘Recoloca a vara de Aarão diante do documento da Aliança, para guardá-la como sinal para esses rebeldes. Assim terminarão as murmurações contra mim, e eles não morrerão’. Moisés fez assim como o SENHOR lhe havia mandado” (Nm 17,16-26).

           Na linguagem bíblica do Antigo Testamento, a vara é o ramo florescente da AMENDOEIRA que Deus fez brotar para escolher o sumo sacerdote Aarão como custódio do tabernáculo (cf. Nm 17,16). Mas o que isso tem a ver com São José? Tão “silencioso”, ao menos aparentemente, São José diz-nos bastante através dessa linguagem no Proto-Evangelho de Tiago, que é fundamentada nessa passagem do Livro dos Números (Nm 17, 16-26). Vamos conferir o texto do Proto-Evangelho de Tiago:

“(...) Mas, ao completar doze anos, os sacerdotes reuniram-se para deliberar, dizendo: ‘Eis que Maria cumpriu doze anos no templo do Senhor. Que faremos (...)?’ E disseram ao sumo sacerdote: ‘Tu que tens o altar a teu cargo, entra e ora por ela, e o que o Senhor te disser, isso será o que haveremos de fazer’.
E o sumo sacerdote, cingindo-se com o manto das doze sinetas[1], entrou no ‘santo dos santos’ e orou por ela. Mas eis que um anjo do Senhor apareceu, dizendo-lhe: ‘Zacarias, Zacarias, sai e reúne a todos os viúvos do povoado. Que cada um venha com um bastão, e o daquele em que o Senhor fizer um sinal singular, deste será ela esposa’. Saíram os arautos por toda a região da Judéia e, ao soar a trombeta do Senhor, todos acudiram.
José, deixando de lado sua acha, uniu-se a eles e, uma vez que se juntaram todos, tomaram cada qual seu bastão e puseram-se à procura do sumo sacerdote. Este tomou todos os bastões, entrou no templo e se pôs a orar. Terminadas as suas preces tomou de novo os bastões e os entregou, mas em nenhum deles apareceu sinal algum. Porém, ao pegar José o último, eis que uma pomba saiu dele e se pôs a voar sobre sua cabeça. Então o sacerdote disse: ‘A ti coube a sorte de receber sob tua custódia a Virgem do Senhor’” (Proto-Evangelho de Tiago VIII,2—IX,1).


           A iconografia mostra-nos São José com um bastão florescente, muito embora no Proto-Evangelho de Tiago surja uma pomba da vara de São José (Proto-Evangelho de Tiago IX,1). Mas gostaria de chamar a atenção para o tipo da planta que constituía os arbustos que eram utilizados para “tirar a sorte”, modo como que a literatura bíblica patriarcal indicava a intervenção de Deus numa dada circunstância, por exemplo, como a da escolha do sumo sacerdote em que Aarão foi eleito (Nm 17, 16-21). Estamos acostumados a ver as imagens de São José com o Menino Jesus ao seu colo, e, ao seu lado, uma flor de lírio ou de açucena. Similarmente aos Patriarcas, São José era representado na iconografia com um bastão de amendoeira, e, o significado desse símbolo bíblico é bastante rico. Se no Antigo Testamento nós vimos, por exemplo, Aarão ser agraciado com o milagre em seu favor — o seu bastão de amendoeira “floresceu” — mostrando que ele havia sido eleito por Deus para guardar e proteger o tabernáculo, agora na economia do Novo Testamento foi São José o escolhido diretamente por Deus como custódio de um tabernáculo muito mais precioso — Maria Santíssima, Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo — cujo significado simbólico é esse: a amendoeira, que em hebraico significa “vigilante” — dado que suas flores são as primeiras a aparecer na primavera, avisando que a estação chegou —, de modo análogo era agora São José a nos avisar que a Encarnação do Verbo chegou, que os tempos messiânicos começaram a se cumprir! De fato, na língua hebraica, o termo “amendoeira” é traduzido por “despertadora”, “vigilante”, uma alusão à sua flor, que é a primeira a


florescer na primavera. As flores de coloração róseo-branca sempre surgem antes de suas folhas. Aliás, a amendoeira desempenhou um papel importante na história de Israel. Jacó incluiu nozes de amendoeira entre seus presentes a José no Egito (Gn 43,11). A ornamentação dos candelabros era feita depois que a amendoeira florescia (Ex 25,33). E, como vimos acima, a vara de Aarão constituía-se num galho de amendoeira (Nm 17,8). Porém, essa simbologia quase se perdeu no final do século XIX — talvez por influência do puritanismo da “era vitoriana” — quando os pintores substituíram a amendoeira (símbolo da vigilância) pelo lírio ou pela açucena (símbolos da pureza), esquecendo-se, todavia, do tema da eleição feita por Deus (Nm 17,16).
           Outro texto bíblico reforça essa tese da eleição realizada por Deus, aproveitando o trocadilho entre as palavras que evocam a idéia de amendoeira/vigiar: é o texto de Jr 1,11s. O original joga com a semelhança sonora em hebraico de “amendoeira” (em hebraico שקד, lê-se [/SHeKeD/]) e o verbo “vigiar”/”madrugar” (em hebraico שקדי, lê-se [/SHôKeD/]. No texto de Jr 1,11s a palavra “amendoeira” (a “árvore vigilante”) evoca o Senhor vigilante, apontando que toda a palavra de Deus se realizará. A amendoeira na Bíblia denota confiança em Deus, — o Deus sempre alerta — que cumpre com a sua palavra!
           A simbologia da amendoeira é muito rica. Nas regiões do mar mediterrâneo começava a florescência da amendoeira já em janeiro, de sorte que ela se tornou símbolo da qualidade de quem se põe em estado de alerta, de vigilância. O fruto na casca dura de madeira era designado na antiguidade com o mesmo nome, quer se tratasse da amendoeira, quer da noz; o latim nux pode significar tanto a noz como a amendoeira. De acordo com tradições do antigo oriente, o mundo surgiu do fruto original em forma de casca; círculos exotéricos entre os adoradores de Cibele viam o antepassado universal na figura da amendoeira.
           No hebraico, a amendoeira se chama /SHeKeD/ — a “vigilante” —, razão por que se pode encontrar em diversas traduções da Bíblia a expressão “árvore da vigilância” em vez de “amendoeira”. Refere-se ao duplo sentido de /SHeKeD - SHôKeD/ que foi referido anteriormente, quando Jeremias vê um “ramo de amendoeira” e o Senhor lhe diz: “viste bem, porque eu estou vigiando sobre a minha palavra para realizá-la” (Jr 1,11s). Aqui, o próprio Deus é a “Amendoeira” (= “Aquele que vigia” para que a sua palavra venha a se cumprir).
           Nos Padres da Igreja, o ramo da amendoeira e o seu fruto eram considerados símbolos do sacerdócio — isso devido à interpretação dada em Nm 17,16. O modo de se comportar do sacerdote deve, no exterior, ser sóbrio e contido, ao passo que o seu interior envolva a fé como alimento invisível. “O ramo da amendoeira é Cristo”, escreve São Paulino de Nola. O fruto doce da casca dura tornou-se, enfim, também símbolo da Encarnação do Verbo de Deus e recebeu, em cooperação com outros conteúdos de outra origem, a sua mais célebre representação artística na auréola em forma de amêndoa, que — por causa de sua interpretação simbólica referente à ressurreição — se pode encontrar com frequência na representação de Cristo como Juiz universal. Se Maria aparece na auréola em forma de amêndoa é para indicar que Cristo foi gerado em Maria, assim como o caroço da amêndoa se forma na casca que permanece inviolável.
           Voltando ao Proto-Evangelho de Tiago, o texto que diz respeito ao casamento da Virgem Maria e São José é cercado de criatividade. Aliás, a imaginação dos autores dos apócrifos do Novo Testamento, sobretudo o Proto-Evangelho de Tiago, esforçou-se por rodear de circunstâncias lendárias os esponsais de Maria, dando origem a umas fábulas que encontraram tal crédito através de séculos e inspirando os artistas cristãos. Segundo a narrativa exposta, São José foi o que se beneficiou do milagre. Entre os que deste modo se teriam afastado encontrar-se-ia um certo Agabo, jovem nobre e rico, que, desgostoso e despeitado, teria fugido para o deserto; no famoso quadro de Rafael Sanzio, Il Sposalizio, podemos vê-lo retratado quebrando o seu cajado sobre o joelho!
Outro dado que causa curiosidade é o fato de as Escrituras retratarem a eleição de Deus através do ramo de uma árvore (a amendoeira), como em Nm 17,16 — e que podemos aplicar a São José, no quadro de Rafael — pois dar flores ou fruto é símbolo óbvio de vitalidade e fecundidade (cf. Is 11,1; 6,13; Os 14,6-8). Apesar do “silêncio” aparente de São José nos Evangelhos, sua vida e testemunho obediente a Deus foram muito fecundos para a vida de Cristo e de sua Mãe Santíssima. Podemos aplicar à vida de São José o que Cristo mesmo lembra em Jo 15,5: “Eu sou a videira e vós, os ramos. Aquele que permanece em mim, como eu nele, esse dá muito fruto (...)”. Sem sombra alguma de dúvida, a vida de São José foi a realização à letra desse programa de perfeição traçado sob o signo da obediência e da vigilância. Ao ser exortado em sonho pelo Anjo a acolher Maria e Jesus, São José assim o faz “conforme o anjo do Senhor tinha mandado” (Mt 1,24); alertado ainda sobre o perigo que oferecia Herodes à vida de Jesus, São José foge com Maria e o Menino Jesus para o Egito (Mt 2,13-15); e novamente avisado em sonho sobre a morte de Herodes, São José toma o Menino e sua Mãe para retornar para a terra de Israel, porém para Nazaré, para que se cumprissem as Escrituras (Mt 2,19-23; cf. também Jz 13,5; 1Sm 1,11). Em São José vemos como se harmonizam a fé e a obediência a Deus, alimentadas com toda a certeza por uma vigilância exemplar aos desígnios de Deus através de uma vida interior profunda, de busca de intimidade com o Senhor para lhe “escutar a voz” e executar a sua vontade.
           Nos Evangelhos o silêncio — a exemplo de Nossa Senhora — perpassa toda a vida de São José. Trata-se, contudo, de um silêncio que desvenda de maneira especial o perfil interior desta figura. Os Evangelhos falam exclusivamente daquilo que São José fez; no entanto, permitem-nos auscultar nas suas ações, envolvidas pelo silêncio, um clima de profunda contemplação. São José estava cotidianamente em contato com o mistério escondido desde todos os séculos (cf. Ef 3,9), que estabeleceu sua morada (cf. Jo 1,14; Sl 19 [18],5c) sob o teto da sua casa. Isto explica, por exemplo, a razão por que Santa Teresa de Jesus se tornou promotora da renovação do culto de São José na cristandade ocidental: “As pessoas de oração, em especial, deveriam ser-lhe mais afeiçoadas; não sei como se pode pensar na Rainha dos Anjos, no tempo em que tanta angústia passou com o Menino Jesus, sem se dar graças a São José pela ajuda que lhes prestou. Quem não encontrar mestre que ensine a rezar tome por mestre esse glorioso Santo, e não errará o caminho. Queira o Senhor que eu não tenha cometido erro por me atrever a falar dele; pois, embora apregoando que lhe sou devota, em servi-lo e imitá-lo sempre falhei (...)” (Santa Teresa de Jesus, Livro da Vida 6,8).
           Que São José nos ensine o caminho da obediência a Deus e a vigilância na oração para que a nossa vida também seja agradável a Deus e possa frutificar em boas obras. “Ide a José e fazei o que ele vos disser” (Gn 41,55).
L. D. V. M.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

A BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulinas, 1989.

ALONSO SCHÖKEL, Luis. Dicionário bíblico hebraico-português. São Paulo: Paulus, 1997.

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BÍBLIA SAGRADA. Tradução da CNBB. São Paulo: Ave Maria, 2001.

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GASNIER, Michel. José, o silencioso. São Paulo: Quadrante, 1995.

MADRE MARIA JOSÉ DE JESUS. Nosso Pai São José. 8 ed. Rio de Janeiro: Convento Santa Teresa, 2001.

NESTLÉ, E.; ALAND, K. Novum Testamentum Graece. 27 ed. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 2001.

TERESA DE JESUS. Obras Completas. 2 ed. São Paulo: Ed. Carmelitanas/Loyola, 2002.

YOUNGBLOOD, Ronald. Dicionário ilustrado da Bíblia. São Paulo: Vida Nova, 2004.




[1] O manto do efod (peça do vestuário dos ministros do culto) de que fala o Livro do Êxodo (Ex 28,6-14).

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